Milícias são aliadas de associações de proteção veicular

Milícias são aliadas de associações de proteção veicular

Escrita em cartazes de propaganda de cartomantes, a promessa “trago a pessoa amada em três dias” ganhou uma versão do crime organizado — no caso, a “pessoa amada” é substituída por “carro”, e a garantia é dada pela milícia, que encontrou no resgate de veículos roubados uma nova forma de ganhar dinheiro. Ela entra num filão inicialmente explorado pelo tráfico, que cobra “comissões” pela devolução de motocicletas e automóveis levados para dentro das comunidades que domina. Milicianos, no entanto, foram além, assumindo o papel de negociadores junto às chamadas associações de proteção veicular e patrimonial. São cooperativas não reguladas por autarquias que oferecem apólices com preços bem abaixo dos estipulados pelas seguradoras.

A ação de milicianos é reconhecida por Raul Canal, presidente da Agência de Autorregulamentação das Entidades de Autogestão de Planos de Proteção Contra Riscos Patrimoniais. Ele diz que, no Rio, paramilitares (e também traficantes) firmaram acordos com cooperativas que preferem pagar comissões pela recuperação de carros roubados a indenizar seus clientes.

— Há uma situação peculiar no Rio, algo que chamamos de sequestro de veículos. Muitas vezes, bandidos roubam ou furtam um carro para receber um pagamento de R$ 200 a R$ 300. Aí, entram em cena os intermediários das associações picaretas, que prometem encontrá-lo dentro de algumas horas ou poucos dias. Como o veículo segurado por uma cooperativa sempre tem um rastreador, eles podem, por exemplo, ir a uma comunidade e negociar sua liberação com a quadrilha local — explica Canal.

No Rio, o valor das apólices de cooperativas chega a ser 70% menor que o cobrado pelas empresas reguladas pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda que é responsável pela fiscalização do mercado. Com preços convidativos, as associações de proteção veicular e patrimonial têm atraído principalmente motoristas que trabalham com aplicativos e proprietários de carros que moram em regiões de altos índices de roubos e furtos de veículos.

Apesar de esse tipo de crime estar em queda no Rio, como mostram as últimas estatísticas do Instituto de Segurança Pública (ISP), o número de ocorrências em alguns locais mantém elevado o valor do seguro convencional, na comparação com áreas de poucos roubos. Considerando variações da idade do motorista, a apólice de um Fiat Mobi zero quilômetro pode custar de R$ 3.934 a R$ 11.912 na Pavuna. No Leblon, oscila entre R$ 1.517 e R$ 3.523. Dono de um carro desse modelo, um morador do bairro da Zona Norte paga, por mês, R$ 243 a uma cooperativa.

Polícia investiga
Escutas telefônicas feitas pela Polícia Civil e autorizadas pela Justiça comprovam que criminosos negociam devoluções de carros com representantes de cooperativas de seguros. Um inquérito da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA) aponta que pelo menos seis delas recuperaram veículos após contatos com traficantes.

Segundo o delegado Alessandro Petralanda, titular da DRFA, intermediários recebem até 10% do valor do carro e oferecem parte dessa comissão a bandidos:

— Uma prática comum dessas cooperativas é pagar prêmios a quem está com o veículo. Elas têm pessoas para fazer contato com o criminoso. Isso fomenta o roubo em determinadas regiões, como a Baixada Fluminense, conforme mostram nossas investigações. Essas cooperativas não são seguras, não há garantia real de recebimento do valor do sinistro. Elas funcionam numa espécie de pirâmide; se não há dinheiro para pagar a todos os clientes, pagam a quem achar conveniente.

O advogado David Nigri, especialista em direito do consumidor, explica que seguradoras são obrigadas, por lei, a manter uma reserva para o pagamento dos sinistros, o que não ocorre com as cooperativas:

— Cooperativas não têm patrimônio. Nas ações contra elas, o consumidor geralmente ganha, mas não leva. Não tem como penhorar seus bens. Por isso, surgem os conchavos com a milícia e o tráfico.

Órgão regulador
O subcoordenador da Promotoria de Defesa do Consumidor, promotor Sidney Rosa, disse que vê dois problemas quando o consumidor contrata uma cooperativa: ele não recebe informações de que o valor da indenização é limitado e não existe um órgão regulador para garantir a relação de consumo.

— Se as cooperativas oferecem um produto como se fosse um seguro, ela deveria ser regulada pela Susep. As informações para o consumidor devem ser claras, o que não ocorre, de acordo com as queixas que recebemos pela ouvidoria. O consumidor pensa que está contratando uma seguradora mais barata, mas só se dá conta de que foi enganado quando ocorre o sinistro (roubo ou furto). O grande problema é que as associações adotam o sistema de cotas. Se não houver reserva, não tem como pagar — explica o promotor.

Fonte: O Globo

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